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Foto do escritorGlauco Gonçalves

Museu do Depois do Amanhã

Atualizado: 6 de jul.

[Coautores: beta reis e Henrique de La Fonte]

Mas, o povo da cidade e os padres [e o governo e os especuladores] de lá acharam que não estava bem ao gosto deles, não gostaram ou não entenderam meu trabalho e mandaram passar cal [manta asfáltica e depois makita] por cima dos meus afrescos. Direito deles, penso eu […]. Com o passar do tempo e com a retirada da cal meus afrescos poderão aparecer também […], quem sabe mais compreendidos agora.[1]

Um pouco antes de anteontem: beirando os anos 60, a Celg inaugura seu prédio em Goiânia. Perto do Lago das Rosas, na assim chamada Avenida Anhanguera (Avenida Maria Grampinho, desde depois de amanhã). Para tal, havia convidado ninguém menos que o engenheiro Oton Nascimento, o artista e arquiteto Gustav Ritter e o artista Frei Confaloni. Surgia ali uma construção que nada devia aos melhores projetos da arquitetura moderna dessa primeira geração.



Em 2016, a Celg é privatizada e sua sede vira espólio relevado, jogado na calçada, largado de lambuja pelo Estado, ainda não às traças, mas já em seu devir a ser. Um grupo de abutres, digo especuladores imobiliários, compra o prédio, que a Enel ganhou de brinde ao abocanhar a Celg e pasmem: alugam o prédio que era do Estado de Goiás pra quem? Para o Estado de Goiás! Que passa a pagar aluguel para usar o prédio que foi seu por meio século e lá instala a Secretaria de Educação (Seduc).


Em  inícios de 2020, ainda antes daquele fim de mundo que começou e que já acabou, a Secretaria de Educação do Estado de Goiás migra para o setor Vila Nova (também nas beiras da Avenida Maria Grampinho, à época ainda chamada de Anhanguera) e o antigo prédio da Celg, agora de propriedade de três grupos privados, simplesmente fica vazio. Mais que isso: fica arreganhado, aberto como quem espera pelo caos ou pelo acaso; aberto estrategicamente como gesto de descaso contra qualquer defesa da sua permanência. Surge aí uma corrida com dois lados. De um lado, o Conselho de Arquitetura e Superintendência de Patrimônio almejando o tombamento deste vigoroso pedaço da história em estado de concreto (Oton e Gustav) e em traços únicos de afresco (Confaloni). De outro, proprietários sedentos pelo desmoronamento contra o tombamento.


Em março de 2020 o painel  de quase nove metros de largura pintado por Frei Confaloni na segunda metade dos anos 50 acorda conflagrado (leia texto publicado nesta mesma Ermira em https://ermiracultura.com.br/2023/09/10/confaloni-conflagrado-notas-da-extirpacao-da-na-especulacao/). Violentado com manta asfáltica, de cima a baixo, de um lado ao outro. Há quem diga que tratou-se de uma encomenda feita por… curiosamente as telhas do telhado também vão sendo retiradas para que a água faça seu serviço, pouco depois o jatobá que também estava por ser tombado pela Prefeitura cai como se tivesse sido envenenado.

Em agosto de 2023, o mesmo Estado de Goiás e os mesmos proprietários do prédio viram heróis ao pagar uma empresa para picotar o painel conflagrado e levá-lo às catacumbas do Museu de Arte Contemporânea de Goiás (MAC), onde repousa impávido e sem um único toque de restauro desde então.


Diante disso tudo decidimos infiltrar este Museu do Depois do Amanhã. Inventado por nós (Glauco Gonçalves, Henrique de La Fonte, Luiz da Luz, beta reis e Robert Valentin), mas produzido por todos que já mencionei aqui: do descaso ao acaso.

Trata-se de um museu vivo! Tomado por uma profusão infindável de vidas não humanas e de obras e presenças profundamente humanas. Sem vida são os shoppings.


Nele encontra-se uma exposição “permanentemente temporária”, onde plantas, fungos, musgos e outros seres atuam na autoria de obras que compõe o Mudda. Conjuntamente, uma coleção de centenas de pixos e grafites. Num local em que circulam residentes na arte de sobreviver.


Mudda: um museu infiltrado e feito de infiltrações. Fotos: Acervo pessoal


Um ato deliberado de petulância: forjar, impor a contragosto, a fórceps, um museu. Nasce aí um acervo de autorias multiespécies que se associam de forma especial, compondo a espacialidade expositiva. Um museu infiltrado e feito de infiltrações, em que a água é criadora, dançando em formas nunca retas. A inauguração de um museu que, já aberto, nunca fecha.


Certamente a maior das obras do acervo do Mudda é a ausência de uma obra em específico. O buraco do Confaloni sintetiza a extirpação da história: oito toneladas de memória arrancada, depois do painel conflagrado. O buraco do que já foi painel vira um painel de céu, céu do Cerrado, céu do painel serrado.


A escolha curatorial por assinalar as obras com autoria antrópica e pós-antrópica visa abarcar as variadas forças criativas que atuam. O ponto de partida é o prédio arquitetado pelo serumaninho Gustav Ritter, mas, desde seu planejado abandono, veio o desenho do pincel do tempo e de múltiplas agências. Tela para o reino fungi e vegetal, e também tela para a arte humana dita marginal.


Em cada átimo de segundo dos últimos quatro anos, não parou de se produzir. Muda sem cessar. Múltiplos mundos brotam. Em arbustos do segundo andar se anunciam devir-florestas. Museu que sintetiza a obra por excelência do Ocidente branco: paisagem de destroços, fábrica incessante de desmoronamentos. Gostoso avisar que isto não é uma destas defesas nostálgicas da preservação da forma arquitetônica mais careta e carente vigente.


Paradoxalmente, ainda assim se aponta o ataque à história aqui exposto. É dentro deste descaso em estado de história que a gente vai brincando, criando, inventariando. É só por conta do desdém, do desconhecimento sobre Ritter e Confaloni, que se permite desfrutar de alguma apropriação criativa/destrutiva nessa obra-prima da arquitetura goiana.


Museu de caimentos. Tombem o prédio caindo lentamente: é um centro de convívio vivo. Caem gesso, vidro, e a estrutura mira quem passa no eixão na Anhanguera (reintitulada por nós Avenida Maria Grampinho).

Sem janelas, é todo tomado por vãos em suas duas longas, quase infinitas laterais. A luz abunda, o cobogó emaranha toda a frente do prédio e faz seus desenhos no chão. Aliás, a única parte fechada nas duas laterais do prédio todo era o mural do Confaloni.


Do desmoronar brota o acervo. Inventamos um jogo para encontrar títulos para a imensidão das obras. Deste modo, reafirmamos o gesto artístico de tocar na materialidade e transmutá-la em outra coisa ainda.

O Confa foi. Surgem novos estados da matéria.


Assim, nóis tá tombando o que tá caindo, e o que não foi tombado não para de cair.


Damos boas-vindas a todas as formas de vida e estados da matéria!



 


[1]Entrevista de Frei Confaloni para Jacqueline S. Vigário. Diante da Sacralidade Humana: Produção e  Apropriações do Moderno em Nazareno Confaloni (1950-1977). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em  História da Universidade Federal de Goiás (UFG). Goiânia, 2017, p. 74; colchetes:  adições nossas).

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